A igreja abandonada rangia sob o peso do vento que soprava do mar, as tábuas velhas do telhado tremendo como se fossem desabar a qualquer momento. Lá dentro, a luz da única lanterna que Pedro trouxera dançava nas paredes mofadas, projetando sombras longas dos quatro sobreviventes. O cheiro de sal e podridão infiltrava-se pelas frestas, misturado ao som abafado dos infectados que batiam na porta principal — golpes lentos, mas persistentes, como um tamborilar fúnebre.
Higor estava encostado num banco quebrado, o caderno aberto no colo, a caneta tremendo entre os dedos enquanto escrevia: "Mãe infectada. Igreja cercada. Água salgada os atrai." Ele parou, o peito apertado com a lembrança de Clara arrastando-se no chão, os olhos brancos fixos em Henrique. O irmão, sentado no chão ao seu lado, esfregava o braço onde as unhas dela haviam deixado marcas vermelhas, o olhar perdido no vazio.
Ana caminhava de um lado para o outro, a mochila jogada sobre um altar coberto de poeira. Ela segurava o diário de Seu Zé, folheando as páginas com uma expressão tensa, os cabelos pretos caindo sobre o rosto. Pedro, perto da janela quebrada, espiava os infectados lá fora, a mão apertando a barra de ferro que usara no barco.
— Não vamos durar muito aqui — disse Ana, quebrando o silêncio. Sua voz era firme, mas carregava um tremor sutil. Ela largou o diário no altar e cruzou os braços. — Esses bichos vão entrar, cedo ou tarde. Precisamos fazer alguma coisa.
— Fazer o quê? — perguntou Henrique, levantando a cabeça. O tom era cortante, quase acusador. — A vila tá perdida, nossa mãe virou um deles, e a gente tá preso nessa droga de igreja!
Higor fechou o caderno com um estalo e se levantou, os olhos verdes brilhando na luz fraca.
— A gente precisa parar o contágio — disse ele, olhando para Ana. — O parasita tá no peixe, certo? Se queimar os estoques que sobraram do festival, pode atrasar eles.
Ana assentiu lentamente, os dedos tamborilando no braço.
— É uma ideia — respondeu ela. — O estoque principal tá na praça, na barraca do Seu Zé. Se a gente queimar tudo, os que ainda não comeram podem ter uma chance. Mas é arriscado.
— Arriscado é ficar aqui esperando eles derrubarem a porta — retrucou Pedro, virando-se da janela. Ele apontou para o mar, visível através das frestas da madeira podre. — Eu digo a gente construir uma jangada. O barco do Seu Manny tá fora de alcance, mas tem madeira e corda no depósito atrás da igreja. Dá pra escapar pelo mar.— Pelo mar? — perguntou Henrique, levantando-se com um salto. — Você viu o que eles fazem perto da água! Eles nadam atrás da gente!
— Mas não tão rápido — disse Pedro, a voz calma apesar do ombro ferido. Ele esfregou o sangue seco na camisa, um sorriso torto no rosto. — Já vi zumbis na praia. São lentos na água. A gente consegue.
Ana bateu a mão no altar, os olhos faiscando com uma ideia.
— Então a gente faz os dois — disse ela, decidida. — Metade vai queimar o peixe, metade monta a jangada. Se um plano falhar, o outro nos salva.
Higor olhou para os outros, o coração acelerado, mas a mente já organizando os passos.
— Eu vou com Ana queimar o peixe — disse ele. — Henrique, você e Pedro fazem a jangada. A gente se encontra no cais em uma hora.
Henrique hesitou, os punhos cerrados, mas assentiu.
— Tá bem — murmurou ele. — Mas se vocês não voltarem, eu te mato, Higor.
Um barulho na porta dos fundos interrompeu a conversa. Uma mulher entrou, tropeçando nos degraus gastos da entrada. Era Maria, uma costureira de 35 anos, o rosto pálido e suado, os cabelos castanhos colados na testa. Ela carregava uma sacola de pano, o corpo tremendo enquanto se apoiava na parede.
— Maria? — chamou Ana, correndo para ajudá-la. — O que aconteceu com você?
— Eu... eu vi tudo — disse Maria, a voz fraca. Ela tossiu, um som seco que fez Pedro recuar instintivamente. — Dona Lúcia levou os outros pra igreja nova. Tão comendo mais peixe, cantando. Eu fugi, mas... — Ela levantou a manga do vestido, revelando uma mordida no antebraço, a pele arroxeada ao redor.
Higor sentiu o estômago revirar, mas Ana foi mais rápida.
— Você foi mordida — disse ela, a voz baixa. — O parasita tá se espalhando assim também, não só pelo peixe.
— Eu sei — sussurrou Maria, os olhos marejados. Ela largou a sacola no chão, e rolos de linha e tesouras rolaram para fora. — Não vou durar muito. Mas levem isso. Costurei umas lonas pra vocês... pro barco.
Henrique pegou a sacola, os dedos trêmulos ao tocar o tecido grosso que ela trouxera.
— Você não vem com a gente? — perguntou ele, a voz quase um sussurro.
Maria balançou a cabeça, um sorriso triste nos lábios.
— Não — disse ela. — Eu fico. Vou atrasar eles quando vierem. Só... me deixem aqui.
Ana abriu a boca para protestar, mas Pedro colocou a mão no ombro dela, balançando a cabeça em silêncio. Higor anotou no caderno: "Maria mordida. Ficou pra trás. Lonas pra jangada." Ele olhou para ela, os olhos pesados.
— Obrigado, Maria — disse ele, a voz firme apesar da dor. — A gente não vai esquecer.
Os golpes na porta principal ficaram mais fortes, a madeira começando a rachar. Maria se arrastou até um canto, pegando uma faca pequena da sacola.
— Vão logo — disse ela, a voz quase inaudível. — Antes que eu vire como eles.
Ana e Higor saíram pelos fundos, correndo em direção à praça com um pedaço de pano e uma lata de querosene que encontraram no depósito. Henrique e Pedro foram para o outro lado, carregando a sacola de Maria e a barra de ferro, os passos se afundando na terra úmida. Lá fora, o som dos infectados se misturava ao vento, e o cheiro de sal parecia mais forte — um aviso de que o mar estava assistindo, esperando.