Mateus tinha 14 anos e um mundo inteiro na cabeça. Em Wenceslau Braz, uma cidadezinha pacata do interior do Paraná, ele passava os dias entre a escola, os cafezais que cercavam a casa e as histórias que inventava. Não eram contos quaisquer — eram narrativas cheias de lendas que ouvia desde pequeno, misturadas com o que via no mato ao redor: o sussurro do vento nas araucárias, o brilho fugaz de um vagalume, o vulto que jurava ter visto uma vez perto do riacho.
Ele anotava tudo num caderno de capa dura, as páginas já amareladas e cheias de rabiscos, com uma letra miúda que só ele entendia. Mas, apesar do fogo que ardia dentro dele, Mateus era tímido, do tipo que baixava os olhos quando alguém perguntava o que tanto escrevia.
A avó, Dona Clara, era a exceção. Uma mulher pequena, de mãos enrugadas e olhos vivos, ela sempre soube que o neto tinha algo especial. À noite, na varanda da casa de tábuas, enquanto o céu se enchia de estrelas e o cheiro de bolo de milho saía do forno, ela pedia:
— Conta uma das tuas histórias, Mateus. Faz tempo que não ouço uma nova.
— Não sei, vó... Ainda não tá boa o bastante — respondia ele, mexendo nos cabelos pretos e bagunçados, o caderno fechado no colo como um segredo.
Mas Dona Clara insistia, com aquele jeito doce e teimoso que só as avós têm. E Mateus cedia, às vezes, contando pedaços de suas criações: um caçador que barganhava com o Saci, uma moça que virava rio pra fugir de um feitiço, um pássaro de fogo que guardava os segredos do mato. A avó ouvia com um sorriso, os olhos brilhando como se visse tudo acontecer.
O problema veio quando a escola anunciou um sarau. A professora de português, Dona Lúcia, uma mulher alta de óculos tortos, decidiu que os alunos deveriam apresentar algo — poesia, música, qualquer coisa. Mateus gelou. A ideia de subir num palco, com os colegas olhando e talvez rindo, fazia seu estômago embrulhar. Ele pensou em inventar uma desculpa, dizer que estava doente, mas Dona Clara ouviu falar do evento e não deixou barato.
— Você vai, sim, Mateus. Essas histórias não são pra ficar guardadas nesse caderno. O povo precisa ouvir — disse ela, apontando o dedo ossudo enquanto mexia uma panela de feijão no fogão.
— Mas, vó, e se eles acharem ruim? Ou se rirem de mim? — retrucou ele, a voz quase sumindo.
— Quem rir é porque não entende. E quem entende vai te aplaudir. Confia na tua avó — respondeu ela, com um olhar que não deixava espaço pra discussão.
O dia do sarau chegou rápido demais. Era uma noite quente, com o salão da escola lotado de pais, alunos e vizinhos, as cadeiras de plástico rangendo sob o peso da plateia. O palco, improvisado com tábuas e enfeitado com flores de papel, parecia enorme para Mateus. Ele subiu com o caderno na mão, as pernas tremendo e o coração batendo tão alto que achava que todo mundo podia ouvir. A luz fraca do refletor o cegava, mas ele viu Dona Clara na primeira fila, o rosto iluminado por um sorriso orgulhoso.
Respirou fundo e começou. A história que escolheu era sobre o mato de Wenceslau Braz — não o mato comum, mas um lugar vivo, quase mágico. Falou de um menino que, perdido numa tempestade, encontra uma árvore antiga que sussurra segredos. A voz dele, no começo hesitante, foi ganhando força. Descreveu o barulho da chuva nas folhas, o cheiro de terra molhada, o som de um galho que parecia um lamento. A plateia, que antes cochichava, ficou em silêncio. Até os garotos da turma, que costumavam zoar Mateus por ser quieto, estavam de olhos fixos.
— E aí, quando o menino perguntou o que a árvore queria, ela disse: ‘Guarda o que eu te conto, porque o mato tá vivo enquanto alguém lembrar dele’ — terminou Mateus, a voz firme, quase surpresa consigo mesmo.
Por um instante, nada aconteceu. Então, Dona Clara bateu palmas, e o som se espalhou como uma onda. O salão inteiro aplaudiu, alguns de pé, outros assobiando. Mateus sentiu o rosto queimar, mas dessa vez era de algo bom — uma mistura de alívio e orgulho. Desceu do palco com o caderno apertado contra o peito, e a avó o abraçou forte, o cheiro de lavanda do xale dela envolvendo-o como um conforto.
— Eu te disse, meu sonhador. Você tem um dom — sussurrou ela, os olhos úmidos.
Naquela noite, deitado na cama com o caderno ao lado, Mateus não conseguia dormir. O medo de falar tinha virado outra coisa: confiança. Ele sabia que suas histórias não eram só rabiscos — eram pedaços do interior paranaense, das lendas que corriam nas veias da terra e da gente. E agora, depois de emocionar o salão, ele queria mais. Queria contar pro mundo o que o mato sussurrava pra ele.