Capítulo 9: O Fogo e o Caos

 

A noite caía pesada sobre a Ilha das Brumas, o céu negro salpicado por estrelas que pareciam indiferentes ao caos abaixo. Higor e Ana corriam pela viela que levava à praça, o cheiro de querosene subindo da lata que ele carregava, misturado ao fedor de podridão que impregnava o ar. A lanterna de Ana balançava em sua mão, lançando feixes trêmulos de luz sobre as casas abandonadas, cujas janelas quebradas refletiam o vazio.

— Tá vendo a barraca? — perguntou Ana, ofegante, apontando para o centro da praça. A estrutura de madeira do Seu Zé ainda estava de pé, cercada por caixas de isopor e redes cheias de peixes prateados, intocados desde o festival. As escamas brilhavam na luz fraca, como moedas jogadas ao acaso.

— Sim — respondeu Higor, a voz tensa. Ele segurava o pano embebido em querosene com uma das mãos, o caderno enfiado no bolso da calça. — Vamos rápido. Quanto mais cedo queimar, mais cedo a gente sai.

Eles se aproximaram, os passos ecoando no chão de terra batida. Ana jogou a lata no chão, o líquido escuro espirrando sobre as caixas, enquanto Higor rasgava o pano em tiras e as espalhava entre os peixes. Ele pegou um isqueiro que encontrara na igreja, o polegar hesitando sobre a chama.

— Tem certeza disso? — perguntou ele, olhando para Ana. O rosto dela estava suado, os olhos arregalados, mas determinados.

— Não tem outra saída — disse ela, a voz firme. — Queima logo, Higor.

Ele acendeu o isqueiro, a chama pequena tremendo no vento úmido. Com um movimento rápido, jogou-o sobre as tiras de pano. O fogo pegou instantaneamente, um rugido baixo subindo enquanto as chamas lambiam o querosene e se espalhavam pelas caixas. O cheiro de peixe queimado encheu o ar, uma fumaça preta e oleosa subindo em espirais grossas.

— Funcionou! — exclamou Ana, dando um passo atrás enquanto o calor batia em seu rosto.

Mas o alívio durou pouco. Um gemido grave cortou a noite, vindo da direção da igreja nova, seguida por passos arrastados que ecoavam pelas ruas. A fumaça, densa e visível mesmo na névoa, estava atraindo os infectados. Dezenas de vultos emergiram das sombras, os olhos brancos brilhando como lanternas quebradas, os corpos trôpegos, mas implacáveis.

— O fogo os chamou! — gritou Higor, agarrando o braço de Ana. — Corre!

Eles dispararam em direção ao cais, mas uma figura se destacou entre os infectados, bloqueando o caminho. Era Dona Lúcia, transformada em algo pior que os outros. A túnica branca estava rasgada e manchada de sangue, os cabelos grisalhos soltos em mechas selvagens. Seus olhos brancos pulsavam com uma intensidade fanática, e ela segurava um pedaço de peixe queimado nas mãos, como se ainda o oferecesse ao céu.

— Vocês... profanaram... a bênção! — rosnou ela, a voz distorcida, entrecortada por gorgolejos. Ela avançou, os braços abertos, liderando um grupo de zumbis que cambaleavam atrás dela.

Higor e Ana recuaram, o coração disparado. Do outro lado da praça, Henrique e Pedro surgiram correndo, carregando cordas e tábuas da jangada que estavam montando. A sacola de Maria balançava no ombro de Henrique, as lonas dentro batendo contra seu corpo.

— O que tá acontecendo aqui? — gritou Henrique, parando ao ver o fogo e os infectados. Ele largou as tábuas, a faca já na mão.

— O plano deu errado! — respondeu Ana, a voz cortada pelo pânico. — Eles vieram atrás da fumaça!

Pedro correu para o lado de Ana, a barra de ferro levantada, os olhos fixos em Dona Lúcia.

— Fica atrás de mim! — disse ele, empurrando Ana para trás. — Eu abro caminho!

Ele girou a barra, acertando o peito de Dona Lúcia com um golpe seco. Ela cambaleou, mas não caiu, os dentes batendo enquanto tentava agarrá-lo. Dois outros infectados — Seu Carlão e uma mulher irreconhecível — se juntaram a ela, os braços esticados como garras. Pedro golpeou novamente, o metal ecoando contra os corpos, mas então sentiu uma dor aguda no braço. Seu Carlão o mordera, os dentes afundando na carne logo acima do cotovelo.

— Pedro! — gritou Ana, correndo para ele enquanto ele caía de joelhos, a barra rolando no chão.

Higor e Henrique avançaram, afastando os infectados com empurrões e golpes desajeitados. Dona Lúcia recuou, os gemidos dela se misturando aos dos outros enquanto o fogo atrás deles consumia a barraca inteira, as chamas agora lambendo as árvores próximas.

Pedro segurou o braço ensanguentado, o rosto contorcido de dor. Ele olhou para Henrique, os olhos marejados, mas a voz firme.

— Me mata — disse ele, quase um sussurro. — Não vou virar um deles. Por favor, Henrique.

Henrique congelou, a faca tremendo na mão. O fogo crepitava ao fundo, iluminando o rosto de Pedro com um brilho alaranjado, o sangue escorrendo entre os dedos dele.— Eu... eu não posso — murmurou Henrique, a voz falhando.

— Você tem que fazer! — insistiu Pedro, agarrando a camisa de Henrique com a mão boa. — Não me deixa virar isso!

Ana colocou a mão no ombro de Henrique, os olhos cheios de lágrimas.

— Ele tá certo — disse ela, a voz baixa. — É o que ele quer.

Higor virou o rosto, incapaz de assistir, enquanto Henrique levantava a faca. Com um grito sufocado, ele cravou a lâmina no peito de Pedro. Pedro caiu, o corpo relaxando na terra, um último suspiro escapando dos lábios.

— Desculpa — sussurrou Henrique, a faca caindo das mãos. Ele ficou ali, o olhar vazio, até que Higor o puxou pelo braço.

— A gente precisa ir! — gritou Higor, a voz rouca. — A jangada, agora!

Os três correram, deixando o corpo de Pedro para trás. A fumaça os seguia, misturada aos gemidos dos infectados que continuavam a surgir, atraídos pelo fogo que devorava a praça. O cais estava à vista, a jangada incompleta balançando nas ondas, mas o custo daquele plano ecoava em cada passo que davam.